Vivi no Porto durante dois meses, e se há quem pense que foi pouco tempo, eu sou uma dessas pessoas. Foi mesmo pouco tempo. Estava a "viver" a cidade quando fui obrigado, pelas ocultas forças que gerem os orçamentos dos seres humanos, a voltar ao Alentejo.
Durante um desses meses morei em casa de um amigo na Rua da Vitória, que me ficou como a mais lúgubre e pitoresca da cidade. Para quem não sabe, a Rua da Vitória é uma transversal à Rua das Taipas que sobe desde as traseiras do Mercado Ferreira Borges até à Cordoaria Nacional (ao lado dos Clérigos). É, portanto um dos muitos capilares do coração do Porto. Tem um único sentido e é tão estreita que a, aparentemente, simples tarefa de meter o carro a rolar pela Rua da Vitória sem um risco é coisa digna de gabarolice de peito inchado. Não é para todos. É escura e à noite poucos caminhantes (não conhecedores da sua natureza) se aventuram pelos seus paralelos. É, no entanto, uma rua pacífica. É um bairro minúsculo. Todos nos cumprimentam. Os miúdos jogam à bola e os velhos à bisca lambida em cima de grades de cerveja vazias. Ouvem-se os tradicionais, e carinhosos, "filho-da-putas" e "caralhos" e "puta-que-o-parius" por todo o lado. Cheira sempre a mar, porque o próprio mar escorre por entre as juntas dos enormes blocos de granito que impedem as ruas de desabar umas em cima das outras. Como se o mar ele próprio tomasse de assalto a cidade assim que o último portuense adormece e recuasse subitamente mesmo antes do primeiro acordar. Como se a cidade fosse lavada pelo mar todas as noites desde tempos que ninguém recorda.
E enquanto pensava nisto tudo era na maior parte das vezes interrompido por J. "vamos ao Taipas ó alentejano mal amanhado?". E lá íamos para o nosso poiso do costume para uma das sessões tri-semanais de "T&P" (tinto e poesia) no Taipas e Feijão. Entrávamos na tasca de portadas vermelhas e passávamos para outro mundo. Deixávamos as ruas de luminárias titubeantes e passávamos para o colorido domínio do Sr. António, ex-jornalista, actual poeta e taberneiro. Pilhas de livros em cima da mesa, um jarro de vinho, pão, azeitonas e queijo. Às palavras "agora vai-se recitar poesia e, ou se calam, ou pagam o que devem e vão prá puta que vos pariu" o silêncio é sepulcral. O resto da noite era nosso. Nosso, de Negreiros, de Beckett, de Pessoa, de Whitman e de quem mais viesse.
Foi assim que vivi durante um mês e não me importo que me obriguem a repetir. Se possível, durante mais um bocadinho, sim?
P.S.: Escrevi isto levado por um acesso de lembranças provocadas por este texto de Manuel Jorge Marmelo.
Obrigado, pá.
Durante um desses meses morei em casa de um amigo na Rua da Vitória, que me ficou como a mais lúgubre e pitoresca da cidade. Para quem não sabe, a Rua da Vitória é uma transversal à Rua das Taipas que sobe desde as traseiras do Mercado Ferreira Borges até à Cordoaria Nacional (ao lado dos Clérigos). É, portanto um dos muitos capilares do coração do Porto. Tem um único sentido e é tão estreita que a, aparentemente, simples tarefa de meter o carro a rolar pela Rua da Vitória sem um risco é coisa digna de gabarolice de peito inchado. Não é para todos. É escura e à noite poucos caminhantes (não conhecedores da sua natureza) se aventuram pelos seus paralelos. É, no entanto, uma rua pacífica. É um bairro minúsculo. Todos nos cumprimentam. Os miúdos jogam à bola e os velhos à bisca lambida em cima de grades de cerveja vazias. Ouvem-se os tradicionais, e carinhosos, "filho-da-putas" e "caralhos" e "puta-que-o-parius" por todo o lado. Cheira sempre a mar, porque o próprio mar escorre por entre as juntas dos enormes blocos de granito que impedem as ruas de desabar umas em cima das outras. Como se o mar ele próprio tomasse de assalto a cidade assim que o último portuense adormece e recuasse subitamente mesmo antes do primeiro acordar. Como se a cidade fosse lavada pelo mar todas as noites desde tempos que ninguém recorda.
E enquanto pensava nisto tudo era na maior parte das vezes interrompido por J. "vamos ao Taipas ó alentejano mal amanhado?". E lá íamos para o nosso poiso do costume para uma das sessões tri-semanais de "T&P" (tinto e poesia) no Taipas e Feijão. Entrávamos na tasca de portadas vermelhas e passávamos para outro mundo. Deixávamos as ruas de luminárias titubeantes e passávamos para o colorido domínio do Sr. António, ex-jornalista, actual poeta e taberneiro. Pilhas de livros em cima da mesa, um jarro de vinho, pão, azeitonas e queijo. Às palavras "agora vai-se recitar poesia e, ou se calam, ou pagam o que devem e vão prá puta que vos pariu" o silêncio é sepulcral. O resto da noite era nosso. Nosso, de Negreiros, de Beckett, de Pessoa, de Whitman e de quem mais viesse.
Foi assim que vivi durante um mês e não me importo que me obriguem a repetir. Se possível, durante mais um bocadinho, sim?
P.S.: Escrevi isto levado por um acesso de lembranças provocadas por este texto de Manuel Jorge Marmelo.
Obrigado, pá.
3 comentários:
Fiquei com (mais) vontade de conhecer o Porto...
Sim, eu nunca fui ao Porto...autentico crime.
Sortudo!
Coisa Ruim, devias levar umas chibatadas!
Decreto com toda a veemência que quem ainda não passeou os chispes pela Ribeira do Porto devia levar 50 chibatadas e ser acorrentado à Ponte D. Luís durante 3 dias. Tenho dito!
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